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Uma corrida desigual

A Ford fechou suas fábricas no Brasil, e Olívio Dutra voltou a tornar-se manchete pela postura que assumiu em relação à instalação de uma fábrica da Ford no estado do Rio Grande do Sul enquanto era governador, o que acarretou uma campanha intensa contra seu governo, quando se argumentava que ele estaria assumindo uma posição economicamente retrógrada. Recentemente, Rosane de Oliveira em sua coluna da Zero Hora defendeu que a profecia de Olívio se cumpriu.


As montadoras no Brasil mostram uma vez mais o clássico comportamento do grande capital de privatizar os lucros e socializar os custos. A saída do Brasil das fábricas da Ford já apresenta um impacto socioeconômico substancial; “com o encerramento das atividades, serão demitidos cerca de 6 mil funcionários”, mas ”o impacto do fechamento da montadora não se limita aos funcionários, trazendo reflexos para toda a cadeia produtiva da região. Segundo o Dieese, cerca de 118.864 postos de trabalho podem fechar, sejam diretos, indiretos e induzidos”, e “somente em Camaçari, na Bahia, estima-se que 60 mil empregos e centenas de empresas sejam afetadas, gerando um prejuízo de R$ 5 bilhões para a economia do estado. Esse valor equivale a 2% do PIB do estado”. Essa é só uma amostra imediata do tamanho do dano causado por esse tipo de relação das grandes empresas com os países nos quais se instalam, onde recebem isenção fiscal, terrenos, empréstimos e, atuando juntamente com os grandes veículos de comunicação e governantes que se beneficiam dessa lógica de capitalismo sanguessuga, lucram, e assim que lhes parece mais rentável, deixam o país e um legado destrutivo para o espaço no qual estavam inseridas.


Nesse momento é interessante, para além de discutir a relação do bem público com o grande capital de forma direta, refletir acerca de escolhas feitas no Brasil que catalisam esse processo destrutivo. Assim sendo, cabe questionar o porquê de a Gurgel, montadora nacional que pensava carros para a realidade brasileira e que tinha projetos interessantíssimos (a Gurgel ainda na década de 1970 já produzia carros elétricos, por exemplo), não haver encontrado as condições necessárias para manter-se em atividade, falindo (na prática) quase na mesma época (primeira metade da década de 1990) em que Olívio, contra o clamor da RBS e da oposição, não se rende à pressão de dar as condições exigidas pela Ford para que a montadora se instalasse em terras rio-grandenses. O empréstimo de 100 milhões de dólares (é importante recordar que em junho de 1994, mesmo ano em que a Gurgel pede falência, o dólar tinha cotação de 1 real para 1 dólar) pedido pela empresa para evitar o desfecho foi negado pelo Governo Federal do então presidente Itamar Franco, enquanto, em contrapartida, estima-se que a Ford recebeu 200 bilhões de reais em incentivos fiscais desde 1999. É um projeto de dependência que beneficia as elites brasileiras e o grande capital internacional em detrimento do bem público e conta com um suporte de propaganda e desinformação dos veículos que servem a essas elites.


Levando-se em consideração esses fatores, é importante deixar claro aqui que a postura assumida por Olívio não tem nada de profética ; ela foi assumida a partir da leitura do funcionamento das relações econômicas, que em nada têm a ver com magia. Dentre os adversários de Olívio à época, o grupo RBS ocupou papel destacado. Nesse sentido, recomendo a leitura da nota feita pelo economista Sérgio Kapron, na qual aborda essa questão de forma ímpar. Enfim, para Olívio não foi necessário nenhum tipo de clarividência mística ou capacidade oracular para entender de que forma empresas como a Ford se relacionam com países como o Brasil. Sujeitar-se ou não a essa relação desigual é uma disputa de projeto de sociedade.


Referências

BEZERRA, Lucila. “Saída da Ford do Brasil gera desemprego e prejudica economia de cidades do Nordeste”. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/01/21/saida-da-ford-do-brasil-gera-desemprego-e-prejudica-economia-de-cidades-do-nordeste. Acesso em: 31/01/2021.

Andrade, Gabriel. “Fim das operações da Ford gera prejuízo de R$ 5 bilhões para a Bahia”. Disponível em:

JARDIM, Lauro. “Ford recebeu R$ 20 bi em incentivos fiscais”. Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/ford-recebeu-r-20-bi-em-incentivos-fiscais.html?utm_source=globo.com&utm_medium=oglobo. Acesso em: 31/01/2021.



Sugestões de leitura complementar

ROSSETTO, Miguel. “A saída da Ford do Brasil e o capitalismo predatório”. Disponível em: https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2021/01/a-saida-da-ford-do-brasil-e-o-capitalismo-predatorio-por-miguel-rossetto/. Acesso em: 31/01/2021.

VIOTTI, Eduardo. “Gurgel: o engenheiro que virou carro”. Disponível em: https://quatrorodas.abril.com.br/noticias/gurgel-o-engenheiro-que-virou-carro/. Acesso em: 31/01/2021.

WEISSHEIMER, Marco.Caso Ford alimentou guerra diária contra governo Olívio Dutra: ‘foi um moedor de carne’”. Disponível em:https://www.sul21.com.br/ultimas-noticias/politica/2021/01/caso-ford-alimentou-guerra-diaria-contra-governo-olivio-dutra-foi-um-moedor-de-carne/. Acesso em: 31/01/2021.

WEISSHEIMER, Marco. “O Caso Ford: um desagravo a Olívio Dutra”. Disponível em: https://www.sul21.com.br/marco-weissheimer/2013/05/o-caso-ford-um-desagravo-a-olivio-dutra/. Acesso em: 31/01/2021.

“Criticado após Ford deixar o RS, Dutra hoje merece pedido de desculpa, diz economista”. Redação do Portal Brasil de Fato. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/01/13/criticado-apos-ford-deixar-o-rs-dutra-hoje-merece-pedido-de-desculpa-diz-economista. Acesso em: 31/01/2021.

“Fim das operações da Ford gera prejuízo de R$ 5 bilhões para a Bahia”. Redação da Carta Capital. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/economia/fim-das-operacoes-da-ford-gera-prejuizo-de-r-5-bilhoes-para-a-bahia/. Acesso em: 31/01/2021.

“Governo federal nega empréstimo à Gurgel”. Da Folha Sudeste. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/2/12/dinheiro/6.html. Acesso em: 31/01/2021.

“22 anos após romper contrato com o RS, Ford anuncia fechamento de fábricas no Brasil”. Redação do Sul 21. Disponível em: https://www.sul21.com.br/ultimas-noticias/economia/2021/01/22-anos-apos-romper-contrato-com-o-rs-ford-anuncia-fechamento-de-fabricas-no-brasil/. Acesso em: 31/01/2021.

OLIVEIRA, Ricardo de. “Gurgel, a montadora que surgiu de um sonho (bem brasileiro)”. Disponível em: https://www.noticiasautomotivas.com.br/gurgel-a-montadora-que-surgiu-de-um-sonho-bem-brasileiro/. Acesso em: 31/01/2021.



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