Para ler ouvindo Frédéric François Chopin.
Diz a anedota que um dos executivos da Ford Motor Company foi pego bem acomodado em sua cadeira, com os pés sobre a escrivaninha e as mãos postadas atrás da nuca, olhando fixamente para o teto. Não demorou muito para que um dedo-duro fosse delatar o desleixado ao fundador e dono da empresa. Inteirando-se de quem se tratava, Henry Ford advertiu: “Só no ano passado esse senhor fechou negócios da ordem de nove dígitos para nossa companhia. Deixem-no pensar à vontade”.
Creio ter lido em alguma página da Política de Aristóteles a defesa do ócio, necessário para desenvolver a virtude e as atividades políticas, ócio esse, diga-se de passagem, que não se deve confundir com inércia ou preguiça; de fato, O Pensador de Rodin, embora sentado, parado, nunca se poderá dizer inerte: medita magnanimamente, apoiando o queixo na mão direita e o cotovelo do braço direito na perna esquerda, o semblante sério, o olhar fixo, o torso recurvado; um homem nu, com a alma revestida de forças poderosas, contra as quais parece lutar.
Conclusão: o ócio produtivo não é uma contraditio in abiecto.
Pois bem. Estava eu um dia meditando sentado à sombra de uma árvore. A brisa primaveril balançava levemente as folhas, enquanto os pássaros trinavam seus poemas e prosas para mim inescrutáveis. E passei a considerar, sem mais nem menos, qual teria sido o dia mais feliz da minha vida. Repassei os fichários da memória (tenho-a ainda muito boa) e nunca pude me resolver por um só dia, senão dois: aqueles quando nasceram meus dois filhos.
O primeiro, em 1991, foi a surpresa, a emoção inusitada e o orgulho de mim mesmo, que então compreendia ser aquele pequeno ser minha opera prima, no sentido clássico do termo: eu, que até então vagara sem grande prestância por caminhos vários, agora me elevava inapelavelmente à condição de pai. Lembro-me bem de ter chorado e rido a um só tempo, coisa que nunca antes tinha feito nem nunca o faria depois.
O segundo, em 2000, se deu por gracejo dos deuses no mesmíssimo dia em que estava agendada a defesa de minha dissertação de mestrado. Era 18 de maio, véspera do dia do meu aniversário. O nascituro devia vir ao mundo dali três semanas, mas, apressado, quis conhecer os pais naquele mesmo dia. Que fazer? Não se podia cancelar ou adiar a defesa: havia quem houvesse inclusive viajado para compor a banca. A defesa se deu à tarde e o nascimento à tardinha, e eu estive presente em ambos os acontecimentos. Já passava de meia-noite quando Jana, o filho ao colo sugando-lhe avidamente o peito, indicou-me um embrulho pequeno; era um livro, Verdade Tropical, de Caetano Veloso. “Feliz aniversário!”, ela disse, sorrindo cansada. Tive plena consciência de que era então um homem feliz.
Ali, ao pé daquela árvore, eu rememorava esses fatos, e então à frente, a distância, sobre a copa de largo arvoredo, o sol ia despedindo lentamente o dia. Com o avermelhado do crepúsculo, penso ter se alterado o tom da conversa dos pássaros, que julguei estarem se aninhando para a noite vindoura, assim como me pareceu intensificar-se a aragem, de modo que me encolhi, abraçando as pernas.
Entrei então a pensar tristezas e destas busquei, sem mais nem menos, divisar qual teria sido o dia mais triste de minha vida. Já Vênus despontava no céu quando me veio à memória esse dia. Os pássaros já haviam silenciado, e agora ouviam-se os berros afanosos dos grilos e o coaxante lamento das rãs. As estrelas iam se posicionando no amplo céu, e a luz da lua dava um tom prateado ao jardim. Esse dia, o mais triste de minha existência, foi quando, menino ainda, eu descobri a morte; não a morte factual, palpável, ocorrida, que esta só vim a conhecer anos mais tarde, mas a morte ainda assim, e não menos irremediável e dolorosa.
Era um tempo em que havia poucas fotografias, e as que havia era costume guardarem-se numa caixa. Lembro de nesse dia estar sozinho, sentado na cama dos meus pais, olhando fotografias, quando vi uma em que estava meu avô materno. Eu não teria mais de seis anos de idade, e meu avô, com pouco mais de cinquenta, me parecia um ancião, com seus cabelos grisalhos e rugas precoces.
Por alguma lógica infantil, eu sempre concebera meu avô estacionado no tempo; nunca me passara pela cabeça que um dia ele tinha também sido criança, ou jovem, ou outra pessoa diferente daquela que para mim ele sempre fora. Ouvia, claro, palavras como “nascer”, “crescer”, “envelhecer” e até “morrer”, mas essas eram para mim apenas sons sem sentido, significantes de uma língua estrangeira desconhecida cujos significados me escapassem inteiramente.
Mas a foto de meu avô que naquele momento eu tinha diante de mim não era a de um ancião, e sim a de um jovem soldado, sem ruga alguma, de bigode fino, bem aparado, os mesmíssimos olhos grandes e claros sobre o nariz bem torneado e um leve sorriso em que não chegavam a mostrar-se os dentes. Era um jovem, mas era meu avô! Corri até minha mãe, encontrei-a na cozinha, atarefada. Pedi… não: exigi confirmação!
“Ai, o pai quando serviu!”, ela disse, alegrando-se. “De onde tu tirou isso, filho?”, quis saber em seguida. Pergunta descabida! E irrelevante! Não respondi e saí correndo para o pátio, que já não podia conter as lágrimas. Fui me meter ao pé de uma seringueira ao fundo do pátio e, sentado no chão e abraçando com força as pernas, dei largas ao pranto.
Então era assim!? Um dia também eu seria um ancião e, quando o fosse, já meu avô não existiria nem talvez meus pais… Com o tempo, os filhos que eu tivesse também envelheceriam, e eu… bem, eu também um dia deixaria de existir… Parecerá coisa de criança, e na verdade foi, mas como doeu! Não terei tido depois outro dia tão triste, nem, bem pesadas as coisas, julgo que jamais o terei.
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