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Cuidemos uns dos outros

Em 1864, o estadunidense Edgar Allan Poe publicou pela primeira vez o conto “A máscara da morte rubra” (também pode ser encontrado como ”A máscara da morte escarlate”). Nesse conto Poe descreve um país assolado por uma doença chamada de “Morte Rubra”. “Jamais uma peste fora tão letal e tão terrível”, escreve. Nele o rei Próspero, no momento em que metade do reino já perecera em virtude da enfermidade, convocou seus amigos para que se refugiassem em sua abadia fortificada, que fora abastecida de todos os recursos necessários para que esses aproveitassem o porto seguro de prazeres no qual o rei transformou o interior da fortaleza, em contraste com a situação dos demais cidadãos do país, que seguiam morrendo para além dos muros do rei. O conto termina com um baile de máscaras oferecido por Próspero no sexto dia, quando a própria Morte Rubra assume um aspecto humano e vai à festa, vitimando todos os presentes, inclusive o rei.


O conto tristemente é uma metáfora perfeita para a situação do Brasil em relação à atual pandemia de COVID-19, com um presidente que esconde em sua postura irresponsável e infantil um projeto de sociedade e uma lógica nefasta de direito à vida e à saúde. Jair Bolsonaro faz pouco caso da doença, que tem sido um sério problema de saúde pública em escala global desde o seu início. Em janeiro de 2020, ele declarou que não era uma situação alarmante; em março, mês em que se registrou a primeira morte no país, declarou que ”todos nós vamos morrer um dia”, entre outras milhares de declarações subestimando a gravidade da situação por que o país passa, além de declarações que chegam a parecer uma piada de mau gosto, como a de que não tinha medo do vírus por seu passado de atleta, que não se responsabilizava se alguém virasse um jacaré ou alguma mulher nascesse com barba como efeito colateral da vacina da Pfizer, e, simultaneamente à triste marca de 200 mil mortos, Bolsonaro apareceu mobilizando aglomerações nas praias do interior paulista. Em novembro, em vídeo com seu filho Eduardo Bolsonaro, ele declarou que desconhecia o motivo da pressa na aquisição da vacina, que “a pandemia realmente está chegando ao fim, os números têm mostrado isso daí” e que a “pequena ascensão”, o “pequeno repique” que está acontecendo é normal e pode acontecer. Não é preciso dizer que os números que sustentam essa afirmação só foram vistos por Bolsonaro, porque qualquer análise minimamente séria dos dados disponíveis preocupa quem quer que os leia.


Não é difícil de entender o porquê da falta de urgência do presidente em criar uma política efetiva de Estado para a vacinação. No passo em que anda a questão, a vacina será primeiramente acessível em maior número na esfera privada, sendo mais um marco da política assassina do Estado brasileiro frente à pandemia de Coronavírus. Desde seu início, os trabalhadores não tiveram respaldo do poder público para ter cuidados mínimos de preservação da própria saúde; desde março, o isolamento social, o home office, não usar transporte coletivo, receber o supermercado em casa, tudo isso foi um privilégio acessível a poucos. A postura do governo brasileiro, personificado no presidente que insulta incansavelmente todos os afetados por essa doença que assola em número crescente a população, é um reflexo da forma como tem funcionado a lógica de direito à vida e à saúde nos últimos anos no país. O que deveria ser um direito universal passa a ser um privilégio de quem pode pagar por tal, configurando uma política assassina de um Estado que, historicamente, extermina direta e indiretamente setores de sua sociedade, a exemplo da juventude negra e das e dos transexuais. Agora os que poderão pagar pela vacina serão imunizados, enquanto os que não têm acesso seguirão morrendo, sem pressa para que deixem de morrer, em uma política estatal assassina e que anda de mãos dadas com os interesses do grande capital da indústria farmacêutica, que lucra a partir da cura das doenças, mas que não tem interesse econômico em preveni-las. Enfim, para o Estado brasileiro, sua vida vale se você pode pagar por ela.


Portanto, não acredite nas falácias do presidente e não, não tem nenhum dado que embase a ideia de que a pandemia está chegando ao fim. Na verdade, o número de casos confirmados vem crescendo (como mostra o gráfico abaixo, extraído de https://covid.saude.gov.br/, painel de casos de doença pelo coronavírus 2019 no Brasil pelo ministério da Saúde). Portanto, é necessário um esforço coletivo para que essa doença pare de se alastrar e de vitimar milhares de brasileiros. Colaboração é a saída para combater tanto o COVID-19 quanto esse Estado assassino promovido por Jair Bolsonaro e seus apoiadores e aliados. Em 2021 fique em casa, até que de fato tenhamos a segurança de que o fim do distanciamento social não configura um risco grave à saúde pública. Um feliz 2021 a todos.


Referências

Painel de casos de doença pelo coronavírus 2019 (covid-19) no Brasil pelo ministério da Saúde. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/ , acesso em: 15/01/2021.

SOPA DE WUHAN: PENSAMIENTO CONTEMPORÁNEO EN TIEMPOS DE PANDEMIAS.Agamben, G; Zizek, S; Nancy, JL; Berardi, F; Petit, SL; Butler, J; Badiou, A; Harvey, D; Han, B-C; Zibechi, R; Galindo, M; Gabriel, M; González, GY; Manrique, P; Preciado, PB. ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio): 2020.

POE, Edgar Allan. Contos de Terror, de Mistério e de Morte. Tradução de Oscar Mendes. Clássicos Cultura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

“Bolsonaro: Governo não impedirá vacinação contra Covid-19 nas clínicas privadas”, in: CNN Brasil, disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2021/01/07/bolsonaro-governo-nao-impedira-vacinacao-contra-covid-19-nas-clinicas-privadas , acesso em: 15/01/2021.

PACHECO, Ronilso. “No Brasil, Bolsonaro e Covid matam juntos. São cúmplices”, disponível em:

Carvalho, Mara. Um presidente na contramão do direito à vida. Brasil de Fato. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/01/14/bolsonaro-na-contramao-do-direito-a-vida. Acesso em 17/01.

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