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A pandemia, a reorganização das esquerdas e as estratégias de longo prazo do conservadorismo

A conjuntura de 2019 nos países latino-americanos, naquele mês que ficou conhecido como “outubro rebelde”, permitiu antever o surgimento de dois processos simultâneos. De um lado, os protestos, diferentes das manifestações dirigidas por partidos políticos, sindicatos ou movimentos sociais, e conduzidos pela insatisfação em relação aos políticos como um todo. De outro, a presença de governos autoritários determinando repressão violenta, com medidas extremas como prisões em massa, uso excessivo de força e a decretação de estado de emergência e exceção. A violência e o autoritarismo encerram interesses econômicos (acesso às reservas energéticas e às commodities de alto valor) e políticos (interromper definitivamente o ciclo de governos populares que iniciaram o século XXI latino-americano). Os protestos, por outro lado, apontam para uma reorganização da esquerda subcontinental em outros moldes, resultado do enorme desgaste sofrido pelos partidos políticos, decorrentes de suas próprias falhas no poder, mas, sobretudo, porque foram desacreditados por meio de estratagemas sórdidos usados pelos setores conservadores para desabonar essas organizações.


Esses dois ingredientes evidenciam: primeiro, a esquerda está se reerguendo de forma menos organizada e dirigida, mas não menos eficiente e assustadora para os setores conservadores das sociedades latino-americanas; em segundo lugar, a ‘Onda Azul”, como vem sendo chamada a escalada ultraconservadora desde 2010, tem apoio internacional e um planejamento de longo prazo; os setores conservadores civis ou militares não hesitam em usar a força, a violência e reeditar o autoritarismo para fazer valer o que reconquistaram: o poder político nos países da região. Era assim em 2019.


A pandemia de COVID-19 modificou o cenário político da região. A América Latina que concentra cerca de 8% da população mundial responde a cerca de um quarto de todos as mortes no mundo pela pandemia. Desde março de 2021, a América do Sul tem o maior número de mortes do planeta por milhão de habitantes causados pela COVID-19. Assim, a reorganização da esquerda foi momentaneamente paralisada pelas medidas de confinamento, as quais, num primeiro momento, impediram a continuidade das manifestações de rua. De outra parte, os governantes conservadores, que planejaram “vir para ficar” utilizando os mais violentos e sórdidos expedientes, foram incapazes de lidar com a crise.


A pandemia acelerou a desigualdade no mundo todo, mais especialmente na América Latina onde a instabilidade política, a pobreza extrema, a corrupção, os frágeis ou inexistentes sistemas de saúde concorrem para acentuar as desigualdades de renda, saúde e educação. As classes populares latino-americanas ficaram extremamente vulneráveis como resultado das dificuldades de acesso aos sistemas de saúde, dos níveis de informalidade do mercado de trabalho, no qual os trabalhadores são obrigados a se expor para manter suas atividades laborais. Mas o que mais prejudicou essa região do planeta foi a incapacidade dos governos: corrupção, negligência na coleta de dados (base para implementação de políticas públicas de qualidade), ausência de compromisso com as medidas de confinamento social, fiasco econômico diante da crise, escassez de testagem e de vacinas e, sobretudo, descrédito na ciência e negacionismo de governantes conservadores.


Em meados de 2020 e em 2021, os protestos decorrentes dessa situação reacenderam a chama de 2019 no Brasil, Chile, Bolívia, Haiti, Peru, Colômbia, entre outros. No Chile, a incapacidade e desleixo do governo de Sebastián Piñera, provocaram protestos violentos em junho de 2020, panelaços para protestar contra a demora nos auxílios prometidos, saque a mercados e incêndio em carros e ônibus no centro de Santiago. Como resultado dos protestos foi realizado um acordo para em maio de 2021 eleger uma Convenção Constituinte que garantiu número semelhante de homens e mulheres, além de 17 representantes dos povos indígenas originários. Até o momento a Assembleia Constituinte já aprovou o reconhecimento da plurinacionalidade e interculturalidade do país. Em dezembro, Gabriel Boric, ex-líder estudantil, derrotou a extrema direita chilena em eleição presidencial.


Na Bolívia, em agosto de 2020, o adiamento das eleições devido à pandemia provocou protestos. Multidões se aglomeraram nas ruas de La Paz e de outras cidades do país, houve bloqueio de estradas que impediram inclusive a chegada de insumos de saúde aos locais de destino. Os manifestantes, apoiadores do ex-presidente Evo Morales, temiam que o adiamento prejudicasse a candidatura de Luis Arce, que nas pesquisas superava o ex-presidente Carlos Mesa e a interina Jeanine Áñez, ambos políticos de direita. Luis Arce acabou eleito e em 2021 a direita boliviana lidera protestos, estimula greve geral e manifestações contra o governo pela crise econômica decorrente dos confinamentos e da própria pandemia. A situação segue explosiva no país, inclusive com temor de novo golpe de estado.


A extensão da greve que paralisou a Colômbia, a partir de abril de 2021, não tem precedentes na história do país. Foram alcançados lugares que antes não eram atingidos por protestos: a produção e distribuição de insumos e alimentos foram interrompidas. Sem liderança clara, o movimento parece reunir trabalhadores urbanos, indígenas e camponeses, e produziu resultados políticos inéditos, tais como a retirada de pauta de um projeto de reforma tributária, que pretendia aumento de impostos em plena vigência da pandemia, e a queda do ministro da Fazenda. Os protestos de rua foram de tal modo intensos que o presidente Iván Duque chamou as forças armadas para conter manifestantes, o saldo de mortos e feridos ainda é desconhecido, resultado da violência contra os manifestantes. Ao sofrimento da população com as mortes decorrentes da pandemia, acrescentou-se o despreparo do governo, incapacidade de liderar o país numa situação de crise. Ao mesmo tempo, os índices de popularidade de Duque despencaram e tudo indica que nas eleições de 2022 ele será derrotado por Gustavo Petro, o esquerdista ex-guerrilheiro e ex-prefeito de Bogotá, a quem Duque derrotou há três anos. Em março de 2022, a coalizão Pacto Histórico, que reúne grande parte da esquerda na Colômbia, obteve 17 cadeiras no Senado e 25 na Câmara dos Deputados e impôs uma derrota ao partido Centro Democrático, liderado pelo ex-presidente Álvaro Uribe. Para as eleições presidenciais de maio de 2022, o senador e ex-guerrilheiro Gustavo Petro segue como favorito.


No Peru, em meio à crise social desencadeada pela pandemia de COVID-19, o presidente Martín Vizcarra foi destituído por um golpe parlamentar, substituído pelo presidente do Congresso, Manoel Merino que renunciou ao cargo cerca de 5 dias depois em função dos protestos de rua que repudiavam o golpe de estado. Francisco Sagasti assumiu a presidência por sucessão constitucional até as eleições de junho de 2021. Pedro Castillo, professor e sindicalista de esquerda, derrotou a candidata de extrema direita Keiko Fujimori em eleição acirrada.


No Brasil a popularidade do presidente Jair Bolsonaro despencou, sobretudo pelo seu desleixo no tratamento da pandemia, mas também pela incapacidade de conter a crise econômica, pelos desastres ambientais provocados na defesa de garimpeiros, pecuaristas e todo tipo de atividade que destrói o meio ambiente, pelo desprezo com a ciência e educação, pelos ataques às instituições democráticas e pela pauta conservadora nos costumes. Manifestantes a favor e contra o presidente se espalharam com rapidez pelo país, os primeiros realizavam carreatas contra as medidas de isolamento social definidas por governadores, enquanto os protestos contra o governo federal, iniciados em maio de 2020, começaram com panelaços e evoluíram para passeatas e marchas em todas as capitais, algumas cidades do interior e até fora do país. Os ataques à democracia e às instituições republicanas desfechados pelos apoiadores de Bolsonaro fizeram com que a pauta antifascista e de defesa da democracia estivessem presentes em todas as manifestações contrárias ao presidente. Os protestos contra a negligência de Bolsonaro no tratamento da pandemia, contra seus ataques à democracia e pela sua incapacidade de resolver questões econômicas, ambientais e sociais, uniram lados políticos que tradicionalmente se enfrentavam.


Neste sentido, a despeito da necessidade de isolamento social decorrente da pandemia de COVID-19, os protestos continuaram e se recrudesceram em 2020 e 2021, sobretudo porque além de despreparados sistemas de saúde, condições econômicas precárias de alguns países, altos níveis de informalidade do mercado de trabalho, os governantes latino-americanos, quase todos conservadores, foram inábeis no tratamento da crise sanitária o que só acentuou a desigualdade social nos países da região e nos fez recordar uma vez mais das condições de dependência e miséria subcontinentais. As vitórias da esquerda e centro-esquerda em alguns países da região renovam a esperança de uma nova mudança de rumo para as sociedades latino-americanas, ainda saibamos que os setores conservadores não se conformam pacificamente com derrotas. Assim, apesar da variedade de situações e das dificuldades em apreender detalhes específicos das manifestações, protestos e conjunturas em cada país mencionado, creio ser útil pensarmos no subcontinente como um todo para compreendermos condições estruturais mais permanentes da região, tanto aquelas do passado, como também as que remetem ao tempo presente.

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