Hoje o mundo conectado se tornou um imperativo nas nossas vidas: nossas aulas se tornaram remotas, nossos escritórios se tornaram home offices, fazemos compras de bens de consumo e de supermercado na rede, nos transportamos por aplicativos, nos relacionamos por aplicativos. Para além dos confortos evidentes, torna-se necessário discutir de que forma a cidadania se relaciona com essa nuance da nossa sociedade, e, nesse aspecto, a apropriação de dados feita por companhias e por Estados é um dos tópicos mais urgentes, uma vez que esses recursos podem acabar sendo usados para a vigilância dos usuários.
Num primeiro momento, é importante estabelecer que, quando falo em vigilância, me refiro ao conceito que defende o sociólogo austríaco Christian Fuchs: “A informação é um conceito mais geral do que a vigilância”, e que “a vigilância é um tipo específico de recuperação de informação, armazenamento e processamento, avaliação e uso, que envolve dano potencial ou real, coerção, violência, relações de poder assimétricas, controle, manipulação, dominação, poder disciplinar” (2011, p. 129)[1]. Os vazamentos de Snowden são, provavelmente, a expressão mais emblemática dessa violação ao direito fundamental da privacidade: em 2013, o estadunidense de 29 anos tornou-se notícia no mundo todo por vazar informações da National Security Agency (NSA). O ex-funcionário da Central Intelligence Agency (CIA) expôs publicamente programas de vigilância extremamente invasivos promovidos pelo aparelho de Estado do país, que haviam afetado, inclusive, as então chefes de governo Dilma Rousseff e Angela Merkel. Discutir os pormenores desse vazamento não é o objetivo desse texto, mas sim discutir o que trazer a público provas desse processo pode acarretar e quais os efeitos dessa vigilância nas nossas vidas.Informações que podem ser coletadas pelo programa PRISM, denunciado por Snowden que, sob o preceito de combate ao terrorismo, dá à NSA acesso aos dados dos usuários dessas ferramentas.
O caso Snowden veio à tona com a divulgação de documentos e informações reveladas pelo ex-técnico da CIA ao jornalista Glenn Greenwald e à cineasta, jornalista e artista Laura Poitras, que fez um trabalho muito elaborado de registro desse processo no multipremiado Citizenfour (dentre esses prêmios, o de melhor documentário no Oscar e no BAFTA), no qual se mostra o diálogo entre esses agentes e Snowden enquanto estava em Hong Kong. Esse documentário aborda de forma bastante completa a gravidade da invasão cometida pela inteligência americana, o alcance que a vigilância desta tem, a exemplo dos cuidados que o estadunidense que a denunciou toma para não ser espionado, como desconectar o telefone ou cobrir-se com um cobertor ao digitar suas senhas, e a relevância desse alcance no cenário geopolítico internacional. O documentário, no entanto, apresenta em alguns momentos a ideia de privacidade associada à liberdade, e nesse ponto não me sinto contemplado. Liberdade não é um bem ou uma propriedade privada, mas sim uma construção coletiva, e é nesse sentido que a vigilância mostra sua faceta mais opressiva.
No TED Talk[2] do qual Snowden participa, é feita uma pergunta que acho que cabe ser explorada: “Se eu não faço nada ilegal nem tenho nada a esconder, por que deveria temer a apropriação dos meus dados por parte dos mecanismos de inteligência dos Estados?”. Nesse sentido é importante lembrar das Ditaduras de Segurança Nacional que marcaram a história da América Latina no século XX com tortura, assassinato, desaparecimento e uma nefasta rede de colaboração repressiva. Estas se basearam na Doutrina de Segurança Nacional, um conjunto de mecanismos de repressão e Terrorismo de Estado elaborado pelos Estados Unidos durante a Guerra Fria para combater o “inimigo interno” e injetado nos Estados ditatoriais a partir da formação, colaboração e atuação direta promovidas pelas forças de inteligência estadunidenses. Sendo assim, é muito grave a possibilidade de esses mesmos órgãos monitorarem as pesquisas que fazes, os livros que compras, os cursos a que assistes, os meios que escolhes para te informar, com quais pessoas te comunicas e em quais horários e lugares. A apropriação dos teus dados por parte dessas instituições que historicamente promoveram perseguição e repressão ao pensamento crítico significa que, no momento em que as tuas práticas não forem mais consideradas legais dentro da relação de poderes que rege os aparatos punitivos do Estado, talvez a pergunta do começo do parágrafo perca a sua simplicidade.
Por fim, não é meu objetivo estabelecer novas condutas ou, hipocritamente, demonizar as novas tecnologias, mas sim tão somente convidar o leitor à reflexão e ao debate, para que juntos possamos discutir qual a relação mais benéfica entre o mundo conectado e a prática cidadã e que, assim, possamos disputar essa relação. A coragem de Snowden foi uma amostra de que essas estruturas e instituições do capitalismo podem ser tensionadas a partir da tomada de posição e da construção de redes de colaboração com o compromisso de estar nesse enfrentamento.
Sugestões de documentários sobre o tema:
Citizenfour (2014) - Laura Poitras
Eis os delírios de um mundo conectado (2016) - Werner Herzog
O dilema das redes (2020) - Jeff Orlowski
[1] Fuchs, C. (2011). “Como podemos definir vigilância?'', in: MATRIZes, 5(1), 109-136. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/matrizes/article/view/38311. [2] Acrônimo de Technology(tecnologia), Entertainment (entretenimento), Design(planejamento), TED é uma série de conferências promovida pela fundação Sapling dos Estados Unidos que discute "ideias que merecem ser disseminadas", segundo a própria fundação.
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