Série de entrevistas com os autores e autoras da Coragem contando sobre seus livros, referências e processos de escrita
É bell hooks quem ensina: por trás de tudo o que fazemos e pensamos, há um sistema implícito moldando pensamento e prática. As coisas não são como são por acaso, e questionar narrativas construídas, repetidas e reproduzidas ao longo de anos pode ser o primeiro movimento para começarmos a contar uma nova história.
E é esse o movimento a que Clarissa Ferreira dá início em “Gauchismo Líquido”, último lançamento da Coragem, em pré-venda aqui no site. Em seu livro, Clarissa nos coloca frente a frente com questões que podem incomodar – mas que justamente por isso carregam o potencial de mudança e merecem ser enfrentadas com coragem.
A obra reúne crônicas, artigos e textos diversos escritos a partir da experiência da autora como musicista e etnomusicóloga e que propõem reflexões sobre a cultura e a história do Rio Grande do Sul em uma linguagem acessível, a partir de viés menos acadêmico. A representação das mulheres na música e na literatura gaúchas, a constituição do estilo e entendimento estético do que passou a se considerar música gaúcha, além de outras diversas questões identitárias, estão entre os temas abordados.
Nesta entrevista, Clarissa fala sobre sua trajetória, referências, como cultura, música e escrita estão presentes em sua vida e a necessidade de questionar narrativas dadas como irrefutáveis. Porque, ao contrário, tudo está em disputa.
“A cultura e a maneira como a compreendemos muda nossa forma de pensar e de nos relacionarmos com o mundo”, pontua Clarissa, e por isso é tão importante estarmos atentas e atentos. Pensar sobre questões de identidade, música, regionalismo, pertencimento e em como foram moldadas ao longo do tempo – e por quais razões – é um passo essencial para descolonizar o pensamento.
1. O que as pessoas podem esperar de Gauchismo Líquido?
Acredito que possam esperar um livro que cause muitas reflexões sobre cultura e sobre sociedade tratando esses temas de forma não academicista, e em alguns momentos até poética. Nos textos em crônica, acredito que tenha trabalhado com uma linguagem mais figurada e livre; já nos textos estilo artigo trago informações e dados que podem nos auxiliar a pensar as questões de identidade, música, regionalismo, pertencimento e em como foram se moldando ao longo do tempo – e por quais razões – e como hoje reverberam nessa era da informação, da cultura de massas e diretamente na nossa existência.
2. Quais foram tuas referências, que leituras foram presentes durante a escrita do livro?
Uma boa parte dos textos vem da minha investigação na área de etnomusicologia, nas pesquisas de mestrado e doutorado, por meio das quais pesquisei a música regional gaúcha dos festivais e a música contemporânea com ligações regionais e com o mercado independente. Nessas pesquisas, além de autores da etnomusicologia, antropologia e ciências sociais, tive contato com os estudos feministas e com o pensamento decolonial. Também não poderia deixar de citar como referência a bibliografia escrita desde a metade do século XX no Rio Grande do Sul, que buscava definir e/ou investigar a cultura e os seus elementos simbólicos, tanto na visão dos folcloristas como Paixão Cortes e Barbosa Lessa, quanto as visões críticas de historiadores, cientistas sociais e das letras e pesquisadores da comunicação, como Tau Golin, Sandra Pesavento, Nilda Jacks, Álvaro Santi.
3. "Gauchismo" oferece uma visão crítica sobre a cultura do Rio Grande do Sul e preconceitos reproduzidos pelo tradicionalismo. Qual a importância de questionar narrativas oficiais e propor novas reflexões, especialmente no contexto em que vivemos?
Acho que a importância se dá porque as questões da cultura e como são compreendidas acabam moldando nossa forma de ser e de nos relacionarmos com o mundo. As práticas musicais, e artísticas em geral, são tecidas em complexas teias que envolvem questões políticas, sociais, econômicas e até legais. A história tradicional, que vem sendo problematizada de forma acentuada na nossa geração, apresenta em sua narrativa a visão dos vencedores, e é alicerçada em disputas territoriais e simbólicas, de dominações e explorações, que vão culminar na desigualdade causada pela opressão das minorias, na padronização dos indivíduos, na reprodução comercial dos bens simbólicos, na alienação, no esgotamento dos recursos, na exploração do meio ambiente e em tudo o que sabemos que é a base do capitalismo. Hoje, com o acesso que temos, podemos compreender quais as bases que definiram e provocaram um mundo em crises políticas, sociais e ambientais. Em contrapartida, também esse mundo, que já aciona vozes mais plurais, pode, e necessita, trazer outras visões para o debate e para ocuparem esses locais de poder, como o da construção de conhecimento, moldando outras possibilidades de ser e pertencer.
4. Comenta um pouco da tua experiência – como mulher, musicista, pesquisadora, gaúcha.
Sou violinista desde os 12 anos de idade, natural de Bagé/RS. Sou bacharela em violino (UFPEL), mestra (UFRGS) e doutora (UNIRIO) em Etnomusicologia e atualmente pós graduanda em Arteterapia. Venho de uma formação violinística eurocêntrica, mas fui descobrindo outras formas de compreender a música e de como tocar o meu instrumento, vindo a me dedicar à música popular, à canção, à criação e também ao violão e à voz. Atuei na música regional gaúcha por cerca de dez anos, no movimento tradicionalista e no movimento nativista dos festivais, e em produções fonográficas e shows, recebendo algumas premiações e tendo a oportunidade de conhecer várias cidades do estado. Também atuei em orquestra durante uns sete anos, quando residia em Pelotas. Trabalhei em musicais infantis, com educação musical para crianças e com animações em festas infantis quando residi no Rio de Janeiro para cursar o doutorado. Do contato com a cultura gaúcha, vieram as indagações que levei para minhas pesquisas acadêmicas, o que ocasionou a criação do blog Gauchismo Líquido em 2014, passando a ser também podcast em 2020. Desde 2018 venho atuando como compositora, diretora e produtora musical, colaborando com vários trabalhos da cena autoral de Porto Alegre. Tenho quatro singles lançados e estou trabalhando na produção do meu primeiro álbum, que se chamará LaVaca. Também atuo como educadora dando aulas de violino popular e na minha escola, Oficina de Compositoras, criada em 2018, que oferece oficinas de criação musical e da linguagem musical.
5. Como música, escrita e cultura gaúcha se relacionam na tua vida?
Minha rotina é exclusivamente dedicada às atividades como musicista e como pesquisadora, que sozinhas já exigem uma dedicação bem densa. Sinto que esses fazeres se retroalimentam, além de se complementarem. Muitas vezes, a pesquisa parte de uma racionalização, e a música de uma criação mais intuitiva, mas o contrário também acontece. Também vejo a música como uma possibilidade de comunicar as pesquisas que desenvolvo. Na pesquisa, vejo possibilidades de inspiração para compor. E assim seguimos multidisciplinarmente!
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