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A mulher gaúcha, literatura e a nova moral do século XXI

Ao tratarmos de fazer uma espécie de cronologia da literatura sul-riograndense há um vácuo enorme no que diz respeito à produção feita por mulheres. Seja por falta de meios para que possam ser publicadas, falta de incentivo, falta de debate em determinadas épocas, ou o mero e mais profundo dos esquecimentos. Na literatura gaúcha do final do século XX, após a redemocratização, vemos um mundo estritamente masculino dentro de enredos literários, neste mundo não há o espaço para o amor, para o empoderamento, para a liberdade sexual.


Recentemente, estive na livraria Calle Corrientes para garantir exemplares vindos diretos do Prata, e me surpreendi com a beleza de uma representação em pintura sobre os gaúchos, feita pelo pintor porteño Florencio Molina Campos (1891-1959). Contudo, o que mais me chamou a atenção foi a mulher gaúcha (ou a falta dela) que sempre está à margem da figura, fazendo los quehaceres, servindo aos homens, fazendo a comida[1] (nunca o churrasco, pois isto pertence ao universo masculino). Ao passo que mostra a mulher trabalhadora do campo, não é a mulher quem majoritariamente frequenta o galpão[2], ou quem troteia à cavalo[3].


A mulher precisa existir para que o gaúcho exista. E nunca é o centro na imagem que fazemos dela e que dela é feita. Ainda, com os textos que tenho lido, me veio à mente que mesmo quando delineada pelos homens, a mulher gaúcha não tem voz, sem contar algumas esplêndidas exceções, como em Érico Veríssimo. Salvo exceções e representações do passado, quem é a mulher na sociedade gaúcha hoje em dia?

Clarissa Ferreira, escritora e musicista, vozifica em suas canções temas concernentes ao machismo na cultura gaúcha. Publicou, a partir da Coragem, “Gauchismo Líquido[4]: livro inédito que reposiciona o passado a partir do presente, além de tratar da representação da figura da mulher na literatura e na música gauchesca.

No que tange ao mundo das crônicas, Nathallia Protazio, pernambucana, escritora, militante do movimento negro e moradora da cb, tem conquistado espaço, com seu livro “Pela hora da morte”, publicado pela Editora Jandaíra.


No terreno da poesia, a editora Coragem resgata a argentina Alfonsina Storni (1892-1938), - muito lembrada por conta da canção de Mercedes Sosa, “Alfonsina y el mar”, que confesso nunca ouvir sem chorar -, com uma coleção[5] de dois livros: “Antologia Poética” e “Poemas de Amor”.


Além do aparecimento de autoras contemporâneas no seio dessa vasta Porto Alegre, tem sido feito por nós um recopilado da cultura produzida por mulheres latinoamericanas. Uma dessas mulheres que quero falar é a gaúcha Lila Ripoll.


Lila Ripoll (1905-1967), nascida em Quaraí, foi militante do Partido Comunista, amiga de grandes nomes como Mário Quintana, Carlos Scliar e Cyro Martins, para citar alguns. Prima muito próxima de Waldemar Ripoll[6], que sofreu perseguição política e foi assassinado brutalmente em 1934, aos 28 anos, em Rivera, no Uruguai. Dirigiu a Revista Horizonte (1949-1956)[7] e foi candidata a deputada pelo PC nos anos 1950. Ela esteve à esquerda de seu tempo: foi poeta, pianista, professora, líder intelectual de seu partido. Se cito Lila Ripoll hodiernamente, o faço em razão de ter surgido após a Revolução de Outubro uma nova mulher[8], que carrega em sua lírica um intimismo numa versificação similar a de Quintana e de lira semelhante a de Cecília Meireles, além de um quê melancólico do sujeito lírico feminino e muita consciência política.


Uma poeta moderna, não à margem, senão no centro de uma outra história[9] modernista, que abre espaço para o surgimento de muitas novas mulheres, intelectuais, trabalhadoras, que representam diversas classes, inclusive as da prosa e da poesia. No mundo do gaúcho antigo não há espaço para a nova mulher. É preciso que nos reinventemos. Desafortunadamente, Lila, ainda que estudada nas universidades do Rio Grande do Sul, foi apagada da história e nós, enquanto gaúchos, devemos brindar aos seus versos que na década de 40 já continham o engajamento que ainda hoje precisamos nos agarrar para não nos deixarmos voltar a tempos terríveis, sem nunca ir sem grito:


Não, não irei sem grito.

Minha voz nesse dia subirá.

E eu me erguerei também.

Solitária. Definida.


As portas adormecidas abrirão

passagem para o mundo


Meus sonhos, meus fantasmas,

meus exércitos derrotados,

sacudirão o silêncio de convenção

e as máscaras de piedade compungida.


Dispensarei as rosas, as violetas,

os absurdos véus sobre meu rosto.


Serei eu mesma. Estarei

inteira sobre a mesa.

As mãos vazias e crispadas,

os olhos acordados,

a boca vincada de amargor.


Não. Não irei sem grito.


Abram as portas adormecidas,

levantem as cortinas,

abaixem as vozes

e as máscaras —


que eu vou sair inteira.

Eu mesma. Solitária.

Definida.


Publicado no livro O Coração Descoberto (1961).

[1] Anexo 1: http://cecabogota.pbworks.com/f/1214845342/molina1.jpg. Anexo 2: https://i.pinimg.com/originals/28/5c/3c/285c3cb990c9c03cfbe04c93a30d73a1.jpg. [2] Anexo 3: https://d3qgqyymz2hc8x.cloudfront.net/wp-content/uploads/2020/02/16-11-17-OBRA-MOLINA-CAMPOS-e1582729898571.jpg. [3] Anexo 4: https://www.clarin.com/img/2019/05/30/K4MaE-PKJ_720x0__1.jpg. Anexo 5: https://www.3minutosdearte.com/wp-content/uploads/2019/06/C6-Molina-Campos-mini.jpg. [4] https://www.editoracoragem.com.br/product-page/gauchismo-l%C3%ADquido [5] https://www.editoracoragem.com.br/product-page/cole%C3%A7%C3%A3o-alfonsina-storni [6] https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/almanaque/noticia/2019/08/um-assassinato-que-mexeu-com-a-vida-politica-do-estado-na-decada-de-1930-cjzuactb706i601papkpkiqzv.html [7] https://www.ufrgs.br/nphdigital/subcolecao/horizonte-rs/ [8] https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/67835/mod_resource/content/2/Alexandra%20Kolontai.pdf [9] https://www.vitorramil.com.br/d/Vitor%20Ramil%20-%20A%20estetica%20do%20frio.pdf

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